A fuga - Parte1
- Relatos e Crônicas com Giselli Oliva

- 15 de jun.
- 4 min de leitura

Toda criança gosta de cachorro. Eu amava todos.
Lembro-me de, ainda pequenina, meu pai me levar no canil da PMSP. Eu sempre quis, mas meu
pai sempre criou canários e minha mãe, embora ela dissesse que, na juventude dela – quando
ainda morava com a minha avó – criou papagaio, coelhos, cachorros etc, depois que casou,
nunca quis nenhum outro animal.
Finalmente em 1997, tive uma cachorra poodle que viveu quase 11 anos, mas padeceu de infarto
em 2008. Lembro até hoje de a minha mãe me contando sobre seu falecimento. Nessa época,
eu morava na Itália e já passava pelos meus problemas de violência citados em textos anteriores.
Meses antes, eu ganhei do – vamos dar um nome singelo ao violentador: energúmeno – pois
bem, ganhei do energúmeno uma pinscher toy e a nomeei de Noemi.
Era uma cachorrinha linda, doce, amorosa e afável com todos, inclusive outros cães. Não latia,
era quietinha. Ninguém no condomínio sequer desconfiava que eu tinha um cão, de tão boa que
ela era. O motivo pelo qual o energúmeno me presenteou com um cão era para que eu
aprendesse a me responsabilizar pelos afazeres de casa. Ele dizia que eu era muito
independente, viajava muito e que a Austrália me desmiolou (tinha morado 3 anos em Brisbane
antes de ir para a Itália).
O tempo passou, as coisas em casa pioraram e muito. No ano derradeiro, o pior ano, eu estava
fugindo de casa, ele me perseguiu, rolamos a escada, escapei, entrei no carro. Ele se jogou
encima do carro, quebrou meu espelho lateral com um soco e naquela noite eu dormi num
estacionamento de supermercado. Era um domingo. Eu tinha só uma mochila pequena para me
trocar e ir trabalhar no outro dia. Noemi tinha ficado em casa.
Na segunda-feira, consegui que uma amiga me hospedasse até que eu encontrasse outro lugar.
Respondi às ligações do energúmeno somente na quarta e combinamos que eu ia buscar a
Noemi na sexta, logo após meu trabalho.
Pois bem, na sexta-feira, assim que cheguei na casa da minha amiga, recebi uma ligação dele,
dizendo que eu nem precisava me dar o trabalho de passar em casa, pois a Noemi estava morta.
Que se eu quisesse vê-la, ele estava com ela no veterinário. Juro que eu não sei nem como eu
não peguei nenhuma multa, porque eu “voei” até o local. Ela já estava dura. Fui expulsa da
clínica de tanto que eu chorava com ela em meus braços.
Daquele ano em diante, o sentimento de culpa ocupou meu coração e minha mente. Não tinha
nada que tirasse da minha cabeça que o falecimento dela tinha sido por minha culpa. Que eu
não tinha conseguido, em tempo hábil, retirá-la daquela casa infernal e maquiavélica, retirá-la
da companhia de um doente mental, psicopata, narcisista...
O tempo passou. Em 2020, após o falecimento de meu pai, já há alguns anos no Brasil, eu me
joguei no trabalho. Tive dois burnouts entre 2021 e 2022 e, nesse ínterim, entrei como voluntária
da causa animal em Indaiatuba.
Foi algo muito despretensioso. Eu comecei a seguir nas mídias alguns influencers e delegados
que apoiavam a causa animal e, de repente, me deparei com uma postagem de uma ONG de
Indaiatuba.
Nesse período, eu tinha colocado a casa de Indaiatuba à venda, mas ia de vez em nunca. Depois
da postagem, comecei a frequentá-la mais e, de pouco em pouco, estava lá quase todos os finais
de semana.
Devo dizer que os voluntários da ONG tiveram muita paciência comigo. Lembro até hoje da
primeira vez que pisei no canil para ajudar em um mutirão de limpeza. Só para se ter uma ideia,
o mutirão funciona aos domingos, começando entre 7h30 ~ 8h. Eu cheguei às 9h30, 10h, na
maior cara de pau, mas extremamente feliz. Esse comportamento foi reiterado. Eles me
abraçaram, eles nunca me julgaram, nunca disseram nada sobre os horários.
Pouco a pouco, fui me inserindo com mais responsabilidade na causa animal. A ONG chama-se
UPAR (União Protetora dos Animais de Rua). Eles foram me convidando para os eventos. Eu fui
aceitando, fui fazendo amizades, abracei e fui abraçada.
A gente costuma dizer que não somos nós que fazemos os resgates, que cuidamos dos animais.
São eles que nos resgatam, que nos encontram, que nos curam. A UPAR realmente é uma
família. Organização de pessoas idôneas, de caráter ilibado, sempre prontas a acolher. A UPAR
é com um coração de mãe. Eles possuem cerca de 160 ~ 170 animais, fora os que estão em lares
temporários, os que estão internados em clínicas particulares, os que estão em hoteizinhos e
fora todas as famílias carentes com seus animais que eles ajudam.
Hoje eu tenho a honra em falar que eu faço parte da UPAR, desta maravilhosa instituição, com
pessoas mais maravilhosas ainda. Nesse lugar eu encontrei amigos que eu amo, pessoas em
quem eu confio e com quem eu consigo, em tantas maneiras, compartilhar minhas dores e
alegrias. Pessoas com as quais eu me divirto travestida de “tchutchucão” nos eventos,
dançando, cantando, tirando fotos.
Eu fui acolhida, fui resgatada, fui abraçada, nunca fui julgada, mesmo sendo cheia de defeitos,
traumas e receios. A dor da perda da Noemi me levou até a Upar. A culpa de não ter conseguido
salvar a Noemi me levou a querer resgatar e salvar outros. Por isso, eu agradeço por tudo o que
eu passei, pois, se eu estou onde estou, se eu faço o que eu faço, se eu pude me redesenhar, e
permitir que tais pessoas entrassem na minha vida, é graças a um passado – mesmo que a duras
penas – me guiou até aqui.
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