ÉPOCAS SOMBRIAS – O GASLIGHTING
- Relatos e Crônicas com Giselli Oliva

- 29 de jul.
- 5 min de leitura

No texto anterior, eu citei que passei pelo gaslighting, que é fazer a mulher duvidar da própria sanidade. Comigo, especificamente, aconteceu quando eu captava algumas coisas no ar – e ele dizia que eu estava imaginando coisas. Quando eu via ele dando em cima de outras mulheres – ele dizia que eu estava imaginando coisas. Quando ele pegava meus pertences, inclusive dinheiro, ou sacava de cartões pré-pagos – ele dizia que eu estava imaginando coisas. Quando ele tirava e mudava coisas de lugar – ele dizia que eu estava imaginando coisas.
Tudo foi gradual, bem orquestrado e proposital. Tudo foi feito para que eu constantemente duvidasse de mim mesma e achasse que estava sempre imaginando coisas. Foi um ato doentio de manipulação. Eu sempre fui uma pessoa muito inteligente, e estava duvidando da minha própria sanidade, percepção e memória. Eu estava ficando confusa e meu emocional estava cada vez pior.
No início, principalmente quando ele dava em cima de outras mulheres, não me apropriei dessa característica, porque simplesmente imaginava que era um homem sendo homem, italiano do sul, vulgo machista. Contudo, quando a violência física começou e, com o passar do tempo, as coisas começaram a piorar, durante as discussões, ele me xingava constantemente com palavrões. Dizia que eu era louca, que não sabia o que estava falando, que ele era o único homem que iria me amar, que ninguém iria me amar como ele me amava, que eu não conseguia ver o quão importante ele era na minha vida, que ele era um diamante que necessitava ser lapidado e que eu não tinha essa competência, que eu era uma desequilibrada, desmiolada e que eu precisava dele para que minha vida andasse nos trilhos. Ou seja, era intimidação e humilhação atrás de intimidação e humilhação.
Ele começou a ficar com várias dívidas. Aliás, nunca soube gerenciar o dinheiro dele apropriadamente. Assim, começou a pegar meu dinheiro escondido. Detalhe: a casa e as contas estavam no meu nome.
Em uma viagem que fizemos para München, na Alemanha, para a Oktoberfest, numa bela tarde fui comprar algo e não achei meu cartão na carteira. Isso era impossível. Eu o havia usado no dia anterior. Quando revirei o quarto, ele, tranquilo na cama, perguntou o que eu estava procurando. Eu disse que era o cartão. Ele respondeu que não o tinha visto, que eu seguramente o tinha esquecido em algum lugar e que ele apareceria a qualquer momento. À noite, quando fomos jantar fora, do nada, vi o cartão na carteira – exatamente onde eu o tinha deixado.
Quando retornamos para a Itália, a primeira coisa que fiz foi ir ao banco escondida. Descobri que ele havia pegado o cartão e sacado dinheiro (provavelmente para parecer o “provedor”, o amigão, que paga tudo para todo mundo – e esqueceu de colocá-lo de volta). Foi um prejuízo de uns 200 euros. Voltei para casa e ele estava lá, deitado na cama, no computador. Falei muito ironicamente com ele e disse que nem tudo ele poderia esconder de mim, que eu tinha ido ao banco e que queria meu dinheiro de volta. Obviamente, isso desencadeou uma luta corporal e, na verdade, não lembro se ele me pagou (muito provavelmente não).
Outro exemplo que me veio à mente foi quando fugi de casa, já nos meus últimos meses naquele país. Até eu me restabelecer em outro apartamento, houve muitos acontecimentos piores do que novela mexicana. Contudo, digamos que, finalmente, ele aceitou tal fato. Só que a aceitação dele teve uma explicação mórbida.
No momento da mudança, ele pediu minha chave emprestada para me ajudar, trazendo as malas do meu antigo apartamento – onde eu morava com ele e que ainda estava no meu nome – para o meu novo apartamento, onde eu compartilhava com outras duas garotas, cada uma com seu dormitório. Eu, inocentemente (e, juro, quero morrer de catapora quando lembro o quão idiota fui), emprestei a chave, e ele foi, pouco a pouco, me trazendo algumas coisas.
Vamos contextualizar: eu trabalhava no departamento comercial de uma empresa e ele era carabiniere, ou seja, um policial que trabalhava para o Estado (curiosidade: a polizia possui uma espécie de conglomerado sindical por trás e difere da Arma dei Carabinieri, que é militar, do Estado italiano), trabalhando em turnos de 12h x 36h (madrugada, noite, tarde, manhã, descanso). Então, foi fácil para que ele manipulasse estratégias para que eu desconfiasse da minha sanidade.
Dia após dia, fui percebendo sutilmente que coisas estavam fora do lugar. Algo que eu tinha deixado no armário aparecia na gaveta, por exemplo. De repente, num outro dia, não encontrava uma blusa; em outro, não encontrava uma calcinha; noutra semana, o perfume que eu tinha deixado na cabeceira não estava mais ali, nem em qualquer outro lugar. Roupas, bolsas, joias... tudo, pouco a pouco, ia desaparecendo.
Eu ainda me encontrava com ele aos finais de semana para que me entregasse coisas minhas que restaram na casa que ele permaneceu. Comentei com ele sobre esses desaparecimentos. Ele me dizia que certamente eram as outras meninas, que tinham inveja de mim, que viam que eu trabalhava em um lugar bom, que eu ganhava bem, que estava sempre muito bem vestida. Dizia que estavam roubando minhas coisas e que isso era para eu aprender, que eu tinha que voltar para casa, de onde eu tinha saído, e que lá, somente lá, eu estaria em completa segurança.
E assim foi por semanas. Eu já não dormia, com medo de que invadissem meu dormitório. Trancava meu quarto até quando ia ao banheiro urinar, até quando ia para a cozinha cozinhar. Aliás, eu nem ia para a cozinha. Como ele me disse para tomar cuidado e não confiar nelas, comprou um forno elétrico para mim, e então eu fazia tudo o que precisava no meu próprio quarto. Eu estava completamente isolada.
Até que um dia, conversando despretensiosamente com uma delas (o que eu não fazia por medo), ela comentou que ele tinha ido lá arrumar umas coisas durante a tarde. Descobri que ele ia sempre lá e ficava horas no meu quarto. Descobri que ele colocou um bug e uma câmera com áudio escondida para me vigiar. Descobri que ele deslocou algumas coisas do meu quarto para os dormitórios das meninas para, assim, fazer com que eu achasse que elas realmente estavam me roubando.
Naquele período, eu não acreditava mais no que via, não sabia o que ouvia, não dormia, não comia. Eu estava definhando, não aguentava caminhar cinco metros sem sentir tontura. Já que ele não podia me ter, estava, pouco a pouco, acabando comigo. Eu chorava porque não aguentava mais, não sabia o que estava acontecendo e me sentia enlouquecendo. Meu silêncio era ensurdecedor. Eu não conseguia mais discernir o que era real do imaginário.
É isso o que o gaslighting faz com você.
E resultou em um efeito devastador na minha mente. Depois que voltei ao Brasil, muita gente achou que eu realmente enlouqueceria, que não superaria, que viveria de antidepressivos, ansiolíticos, calmantes da pior sorta. Contudo, não sei como, não sei por quê, mas eu nunca tomei nenhum deles. Não que eu não tenha precisado, mas me forcei a não ceder, a não aceitar aquilo que eu sentia, a ser combativa e combatente.
Foi uma época horrível, principalmente para a minha mãe, que me acolheu de braços abertos. Me deu amor, foi resiliente, nunca se voltou contra mim, nunca guerreou, sempre silenciou, sempre escutou calada, sempre me abraçou, sempre orou por mim. Seus joelhos estavam sempre prostrados por mim.
Por isso, eu digo que o amor cura. Basta uma pessoa que acredite em você, que esteja ao seu lado, sem ego, com você e por você. Não foi fácil. Foram anos, muitas lágrimas e mais lágrimas.
Mas se hoje eu estou bem, é graças à minha mãe.
Giselli Oliva
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